terça-feira, 30 de agosto de 2016

Obrigada mãe. Parabéns.

Este texto hoje não é sobre mim.
Este texto hoje não é sobre a Teresa.
Este texto hoje é sobre a mulher mais importante da minha vida.
Este texto hoje é sobre a maior guerreira que eu conheço.
Este texto hoje é sobre a minha mãe.

A minha mãe faz hoje 55 anos dos quais quase 30 tenho a honra de fazer parte.
De uma família pouco abastada de 7 irmãos, cedo teve de aprender a lutar. Lutar para comer, para ir à escola, para ter um brinquedo que serviria aos 7 irmãos. Dotada de inteligência e de notas perfeitas a matemática, viu o seu sonho de carreira interrompido pela falta de dinheiro dos pais e pela necessidade de ajudar em casa.
Conheceu o meu pai muito jovem, o seu único amor, o seu único homem.
Foi mãe aos 25 anos e teve no meu nascimento mais uma grande luta. Esquecida num banco do hospital viu as dores do parto e as contrações aumentarem à medida que os médicos passavam sem nada dizerem. Esperou, aguentou a dor e assim se manteve até as dores passarem, até as contrações pararem. Perto de desfalecer foi socorrida por uma enfermeira e levada para a sala de parto, viu a filha ser tirada a ferros e entubada, esperou 5 minutos até ouvir o choro, 5 longos e sofridos minutos… A primeira grande luta da sua vida, a primeira vitória (agora apercebo-me que também para mim o foi). 
Foi talvez por ter sofrido tanto para eu nascer que me soube amar sem limites. 
Ensinou-me tudo o que conseguia e o que não conseguia, mas eu teimava em saber, ela aprendia para me explicar depois. 
Fui uma criança feliz, mimada e amada mas a saber retribuir cada gesto, a dar valor às pequenas coisas mais ainda do que às grandes, a saber que cada conquista tem um prémio, o prémio da maturidade. A minha mãe deixou-me cair mas esteve sempre lá para me levantar. Agora mais abastada soube dar-me o que eu queria na medida certa, ensinando-me que tudo tem um preço, que cada brinquedo, viagem, ou livro, eram sinônimo de trabalho, de suor e de algumas lágrimas.
Eu queria retribuir esse amor e felicidade da melhor maneira que conseguia, dando-lhe motivos para se orgulhar de mim. Acho que consegui.
Entrei no curso que queria, na universidade que queria mas fiquei a 350km de casa, aos 17 anos e sem conhecer ninguém. Senti pela primeira vez a dor da saudade, senti a minha dor mas senti também a dor de saber o sofrimento que a minha ausência lhe estava a causar. Sentia-o a cada abraço de despedida, sentia-o no silêncio da noite quando só queria estar na minha cama, na minha casa.

No meu segundo ano da faculdade, a minha mãe descobre que está grávida, aos 45 anos e 19 anos depois ia ser mãe novamente.
Aconselhada a abortar pelos médico devido a vários problemas de saúde, foi contra tudo e contra todos e decidiu seguir em frente sabendo os problemas que a gravidez lhe podia causar. Seguiu, sofreu, venceu. A Matilde nasceu, linda, sem qualquer problema. Um mês depois cai numa depressão pós-parto que nos abalou a todos profundamente. Com a ajuda de todos, deu a volta por cima e conseguiu mais uma vez provar que não se deixava levar por qualquer coisa.
Pouco tempo depois de recuperada vê o meu pai partir numanova aventura em Angola e fica sozinha a tomar conta da minha irmã. Eu ia quando podia, mas podia tão pouco...
Não muito tempo depois vê o pai morrer com cancro no pulmão e o irmão debilitar-se com ELA (esclerose lateral amiotrófica). Sempre com uma garra infindável tenta manter-se erguida para educar a filha e mesmo quando o irmão acaba por morrer tenta não parar de sorrir, tenta não transparecer a dor, mais uma vez consegue, mais uma vez vence. Mesmo com mais idade, mesmo com menos paciência, mesmo sozinha, tenta passar à minha irmã os valores que me passou até que mais uma vez tem que lutar, desta vez uma luta desigual, uma luta contra um tumor cerebral incurável.

Lembro-me como se fosse hoje, lembrar-me-ei sempre.
Dia 30 de Novembro de 2011, a minha mãe e a minha irmã vinham no comboio para passar o fim‑de‑semana comigo como tantas vezes faziam. Recebo uma chamada da minha mãe a dizer que não se está a sentir muito bem mas que já tinha pedido para lhe trazerem água e que ia melhorar, fico de ligar pouco depois para saber como se sente. Ligo e já não é ela que me atende mas sim o revisor do comboio. Estão parados à espera da ambulância, a minha mãe apresenta sintomas de AVC e a minha irmã seguirá para Lisboa ao cuidado do revisor. Fico sem reação, de um momento para o outro não vejo nem ouço ninguém. Não sei o que se passa, não sei o que fazer nas duas horas que o comboio onde a minha irmã vem demora a chegar. Penso no que lhe hei-de dizer, penso em como tenho que esconder o meu medo, a minha dor, penso em como é difícil colocarmos uma máscara de paz quando todo o nosso interior sofre, penso em como a minha mãe o conseguiu fazer nos últimos anos, sinto um orgulho enorme nela e uma inveja da sua força. Não posso chorar em frente à minha irmã, não posso sequer mostrar o mínimo receio mesmo não sabendo nada sobre a minha mãe. Vejo o comboio chegar, espero e vejo-a ao fundo, a sorrir e de mão dada com o revisor. Corre para mim e abraça-me. É nessa altura que sorrio, é nesse altura que percebo o que é o amor incondicional, a força que nos faz vestir a máscara, aquela criança não merecia sofrer, não podia sofrer, e eu ia fazer tudo por isso. 
Percorro com o meu namorado o caminho até Leiria, o hospital para onde levaram a minha mãe. Fazemos a viagem a falar com a minha irmã, a distraí-la, o meu cérebro dividido em dois, a dor de não saber como a minha mãe está contra a força de não o mostrar e fazer crer à minha irmã que no dia seguinte iria ter a mãe com ela, de perfeita saúde.
Chegamos a Leiria perto da 1h e entro a correr nas urgências, vejo a minha mãe na maca e sinto um sufoco, uma falta de ar, um murro no estômago. Pela primeira vez tomo consciência de como a vida é volátil.

Passei a noite ao lado dela e de tantos outros doentes que se encontravam naquele SO, via médicos a entrarem e a saírem,tentava obter respostas mas ninguém me dizia nada, via a minha mãe a sofrer mas ao mesmo tempo a tentar manter-me calma, a fingir que era uma indisposição, percebi que estava a tentar fazer comigo o que eu estava a fazer com a minha irmã, a colocar uma máscara sobre o sofrimento, mas para ela, isso era impossível naquele momento, eu sentia-lhe as dores.

Depois de uma TAC decidem transferi-la para Coimbra sob apertada vigilância. 48h depois temos a resposta, um tumor no sistema nervoso central, agressivo e não operável. A minha mãe recebeu a notícia de uma forma serena, eu nem tanto. Saí para falar com o médico, a resposta foi cortante "'não há muito a fazer" (essa frase não a disse à minha mãe).
Voltei para junto dela e perguntei como se sentia, pensei que a resposta fosse de raiva, de injustiça, mas não… Serena, tranquila, ela responde: "Não sou mais do que ninguém, se acontece aos outros, porque não me pode acontecer a mim também?". Foi nessa altura que percebi que tinha à minha frente uma mulher com um força tremenda, uma coragem desmedida e uma lutadora que não se ia deixar levar assim tão facilmente.

Uma semana e poucos dias depois a operação para fazerem biópsia. Eu não continha o nervosismo mas ela sim, ela sorria, ela fazia piadas sobre a situação, ela ajudava aos colegas de quarto, ela fingia que estava bem, que não tinha aquele bicho dentro dela.

Foram 12 longas horas na sala de operações, eu, ciente dos riscos que a operação acarretava, não consegui sair de perto até ver o médico e ouvir as palavras que me aliviaram um pouco "correu tudo bem".

Mantiveram-na no hospital até ao dia 23 de Dezembro, eu só queria passar o natal com ela em casa, ela fez tudo por isso e conseguiu. Na minha cabeça poderia ser o último natal, na da minha mãe não, era só mais um.
Durante quase um mês eu não saí de perto dela, já conhecia de cor as paredes e os corredores do hospital, já sabia o nome dos enfermeiros, dos médicos, dos outros doentes. Durante um mês eu não fui trabalhar, desdobrava-me em viagens para estar com a Matilde e com a minha mãe, chegava a fazer 600km (o meu pai ainda não tinha conseguido sair de Angola). Senti o verdadeiro significado da palavra amor, em todas as formas, no sofrimento, nos sorrisos, na força, na dor e na paz. Aprendi a guardar as lágrimas para o final do dia e a sorrir mesmo despedaçada por dentro, aprendi a força que o amor pode ter mas aprendi pela primeira vez a lidar com o medo da solidão. No meio do meu turbilhão de emoções do que o amor é capaz, aprendi a ser a melhor amiga da minha mãe, a dar-lhe a mão como ela me dava quando eu era criança, a dar-lhe a força que ela me dava nas minhas quedas e a guardar para mim os segredos que a poderiam fazer sofrer. Nunca chorei à frente dela, não por vergonha, mas porque a força dela não mo permitia. 

Em fevereiro, iniciam-se os tratamentos, quimio e radioterapia ao mesmo tempo, quimioterapia para matar o bicho maligno, radioterapia para não deixar aumentar o tumor que não podia ser extraído.
Nunca uma lágrima caiu dos olhos da minha mãe, mesmo quando as agulhas entravam e saíam, mesmo quando o cabelo começou a cair, mesmo quando os enjoos eram tão fortes que não lhe permitiam comer nada, mesmo nos piores dias ela continuava a sorrir, mesmo quando começou a ver as suas feições alteradas pelo inchaço dos tratamento, pela queda do cabelo, pelos enfraquecimento dos dentes, pelo tremor das mãos, até nessas alturas ela se preocupava em saber como eu estava, como os outros estavam e teimava em dizer que estava bem.
Lembro-me dar gargalhadas sentidas quando experimentávamos perucas, chapéus e lenços para ela usar. Não eram gargalhadas de quem coloca uma máscara para enfrentar a vida, eram gargalhadas de quem sabe que a vida vale a pena, de quem vê uma luz no meio da escuridão.

Aguentou tudo e quando ninguém acreditava que ela ia aguentar ela provou que era possível.
Lembro-me de uma pergunta que a médica lhe fez " o que a mantém tão forte? ", a resposta foi imediata, sem pestanejar: "só quero ver a minha filha crescer". 

Lutou, lutou com tudo que tinha e que não tinha, desafiou probabilidades e conseguiu, vários ciclos de tratamento depois chegou o dia de sabermos os resultados.

Entrámos as duas no consultório da médica à espera da resposta, preparadas para o pior, mas não foi o pior que nos foi dito, foi sim o melhor, mais do que poderíamos esperar. "Parabéns, contra tudo que estávamos à espera, o bicho morreu". Chorei, pela primeira vez após vários meses de sofrimento, chorei à frente dela, mas chorei de felicidade, uma felicidade que não cabia dentro do peito, uma leveza inexplicável invadiu-me. A minha mãe manteve o sorriso de quem sabia que só podia ser aquela a resposta. 

Sabíamos que o tumor continuava lá, sabíamos que não estava curada, nunca estará, mas a maior luta de todas estava ganha.
Ela conseguiu porra. Ela mostrou como o amor pode curar. Ela ensinou-me mais uma vez como se luta, como se consegue. Ela ensinou-me a sentir o sabor da vida.

Agora, quase 5 anos depois, as mazelas da doença começam a sentir-se, quando perde a fala, quando perde os movimentos ou quando confunde situações, mas mesmo assim, continua a sorrir, continua a não mostrar que sofre para não causar sofrimento aos outros.

Agora, quase 5 anos depois, falo dela com um brilho nos olhos e um orgulho que não me cabe no peito.
Agora, no dia que faz 55 anos só lhe quero dizer que é uma honra ser sua filha e sua amiga, que é inexplicável o amor que sinto, que é inigualável a força que me passou.

Agora, no dia que faz 55 anos, só queria estar ao pé dela para lhe cantar os parabéns e para a abraçar, tal como ela fez quando eu comemorei os meus 25 anos a 9 de dezembro naquele quarto de hospital, rodeada de enfermeiros que a minha mãe chamou só para me sentir melhor, para soprar as velas com a felicidade de quem está numa festa de sonho. Não estou perto dela, hoje pelo menos não, e está é a minha maneira de a homenagear, esta é a minha maneira de lhe dizer "OBRIGADA MÃE".

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Um exercício.



Ontem, a minha melhor amiga enviou-me esta imagem e perguntou-me qual tinha sido a primeira palavra a vir-me à cabeça. Eu não consegui eleger uma. Mas tive um momento maravilhoso.

Assim que recebi a imagem, sorri e fui invadida por imagens na minha cabeça. Imagens boas, acompanhadas de sensações boas, que ilustram as palavras que, para mim, neste momento da minha vida, ilustram e representam a felicidade: praia, sol, amigos, fins-de-semana. Estas quatro palavras, nas quais pensei instantaneamente, trouxeram imagens boas, mesmo boas, à minha mente e assim fiquei, embrenhada naquela sensação, durante uns bons minutos.

Foi por isso que quis partilhar isto convosco. Acho que é um bom exercício. E um exercício bom. Porque, de certeza absoluta, qualquer que seja o nosso estado atual, temos as tais palavras que nos lembram a felicidade. E essas palavras podem fazer-nos recordar, reviver, sorrir. 

Comigo, aconteceu. E foi bom. Vamos fazer isto mais vezes? 

Teresa

domingo, 21 de agosto de 2016

A ti, companheira de blog.


A ti, companheira de blog, queria dizer-te, em primeiro lugar, que és muito mais do que isso: és uma companheira para a vida.

A ti, companheira de blog, queria dizer-te que já me faltam as palavras para descrever a importância que tens para mim, porque acho que as palavras não são suficientes.

A ti, companheira de blog, queria agradecer-te por me teres deixado ajudar-te e por teres confiado em mim, sem me conheceres de lado nenhum.

A ti, companheira de blog, queria agradecer-te por teres partilhado a tua história comigo e por me deixares partilhar a minha, contigo.

A ti, companheira de blog, obrigada por teres aparecido na minha vida e por seres a prova viva de que “há males que vêm por bem”.

A ti, companheira de blog, obrigada por cada vez em que aturaste os meus dramas mas, também, por cada vez em que riste comigo e em que partilhaste comigo a minha felicidade (e a tua, também).

A ti, companheira de blog, obrigada por teres alinhado comigo na ideia de criarmos um blog e por, comigo, tentares chegar a quem precisa, como nós já precisámos.

A ti, companheira de blog, obrigada por seres um pilar fundamental na minha vida e por me fazeres (mais) feliz.

A ti, companheira de blog, teria muito mais para te dizer, mas continuo a achar que as palavras nunca serão suficientes.

Teresa

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Como tudo começou - parte III (e última)


Não sabia o que se estava a passar, sentia frio e calor, fome e enjoos, tudo ao mesmo tempo. Sentia que o corpo tremia sem controlo, que tinha os pés dormentes e as mãos geladas, o sempre presente peso no peito, a falta de ar e o querer falar, o querer chamar alguém mas não conseguir. Assumi que se tinham enganado nas urgências e que era ali, na minha cama, às 3h da manhã, que ia morrer.

Consegui arranjar maneira de me ouvirem, vesti-me sem qualquer preocupação com a roupa, saí de casa sem me olhar ao espelho, não só porque não queria mas, principalmente, porque naquele momento o meu aspeto era o que menos me importava.

Desta vez, CUF Descobertas, hospital particular, novos médicos, esperança em obter respostas, um diagnóstico conclusivo.
Quando entrámos na ponte, vi Lisboa como nunca tinha visto, senti Lisboa, senti o cheiro, vi as luzes amarelas, que a tornam tão bela, vista da outra margem, a refletirem no rio, com uma beleza inexplicável. Uma leveza de espírito invadiu-me, era essa imagem e a da pessoa que estava comigo naquele carro que eu iria levar comigo caso morresse, era só nisso que consiga pensar. Fechei os olhos para guardar essa imagem até chegarmos.

Desta vez, não houve olhares de pena nem cabeças viradas pela curiosidade, nada. Às 3.30h num hospital privado pouco mais há do que pessoas a fumarem à porta e um silêncio que, de tão profundo, se torna perturbador, que deixa espaço a que sintamos mais, a que sintamos tudo de uma forma muito mais profunda.

Nova triagem, batimentos sem controlo, dor no peito, formigueiro, dificuldade em respirar e medo. Sempre o medo.
Pulseira laranja e entrada direta para o gabinete médico.
Abro a porta e sento-me, a tremer. A primeira pergunta que o médico me faz é avassaladora: "então diga-me lá o que se passa?" Porra!! Isso é o que eu quero saber, eu não posso responder porque essa é a minha pergunta! O que é isto que eu sinto? Que sensação dolorosa é esta que não passa? Que medo é este que nunca ninguém me avisou que era possível sentir? Que angustia é esta que me consome?

De olhos cheios de lágrimas, quase a pedir socorro, mas sem perder o controlo, lá voltei a contar tudo o que, há pouco mais de 12h, e a 300km de distância, tinha contado.
Novo ECG, novas análises, novo tempo de espera e a mesma resposta: NADA. Nada de nada. Garantem-me que não vou morrer de ataque cardíaco, dão-me um sedativo e dizem que apenas preciso de descansar e ter calma. Descansar? Calma? Como se faz isso se até de respirar temos medo?!
Aconselham-me a marcar consulta no médico de família. Assim o fiz: consegui para o dia seguinte às 20h na CUF Alvalade.
Quando saí do hospital, já estava mais calma, mas continuava sem respostas. Cheguei a casa e, mesmo com o sedativo não adormeci, tinha medo, medo de não voltar acordar ou de adormecer e acordar com os mesmos sintomas. Estava com medo do escuro, do vazio, com medo do medo. Agarrei-me à esperança de que a consulta com o médico me traria respostas e tentei ler.

Um tempo depois, o sol começava a nascer, vi os que amo acordarem e perguntarem como eu estava, foi nessa altura que tudo desabou, do nada começo a chorar compulsivamente, a tremer, a não conseguir levantar-me da cama, o cansaço das últimas horas e a imagem daqueles rostos começaram a entrar na minha cabeça como uma bola de neve transformada em avalanche incontrolável, parecia que estava em estado de hipnose, não conseguia pensar em nada, não conseguia controlar a mente nem o corpo e finalmente entendi...: Entendi que já não era dona de mim.

9h da manhã: o médico é só às 20h, dizem-me para ter calma, dizem-me que vai passar rápido mas eu sinto que não vou aguentar.

A manhã passou assim, de dedos entrelaçados e abraços sentidos, de lágrimas de revolta da minha mãe por me ver assim e não conseguir fazer nada para aliviar. Eu não queria comer, não queria andar porque sentia que as pernas iam fraquejar, não queria sair da cama, mas, depois de muita insistência, acabei por tentar. Tentei a sério, com toda a força que sabia ter e com mais alguma que fui buscar, ainda não sei onde.
Desci as escadas amparada e comi, decidi ficar no sofá mas ainda faltava tanto para às 20h.

Para mim, naquele dia, o relógio não marcava segundos mas sim minutos, parecia que já tinha passado uma semana desde a entrada naquela ambulância.
Não aguentei, não resisti até as 20h e por volta das 16h lá fui eu novamente às urgências, eu não me sentia bem e percebi que transparecia esse medo quando a minha irmã me pegou na mão, me pediu para deitar a cabeça no colo dela, num corpo que tem metade do meu tamanho, e me pediu para ficar bem. Senti um dor horrível, a dor de a ver sofrer!

Voltei às urgências, desta vez no hospital Garcia de Horta. Uma fila interminável para a triagem, os sintomas estavam piores que nunca, começo a entrar em pânico, a chorar desesperadamente, viro-me para o J. que, mais uma vez, me levou e digo-lhe "eu vou morrer aqui, por favor não deixes que isso aconteça".

Horas de espera desesperantes, mesma repetição de exames, o meu braço já com marcas negras das agulhas das últimas picadas. Desta vez novidades nas perguntas da médica:

Consome drogas ?
Não.
Tem a certeza?
Sim.
Nem uns charros?
Não.
Tem a certeza?
Sim.
Tem andado ansiosa com alguma coisa nos últimos tempos?
Não.
Tem a certeza?
Sim.
Há algum motivo para ter os batimentos tão acelerados?
Não sei, diga-me a doutora.

Conclusão: exames normais, comprimidos debaixo da boca e uma injeção de líquido no catéter. Receita para calmantes SOS e um adeus quase irónico "as melhoras e não consuma drogas".

A falta de sensibilidade sempre me magoou mas naquele momento nem me importei, a dor que sentia já se sobrepunha a tudo o resto.

Eram quase 20h, ainda dava para ir à consulta, com atraso mas dava.
Chego à CUF Alvalade e o médico já estava à minha espera.
Pela primeira vez depois de tantos exames repetidos e médicos pouco humanos, encontro um que me pega na mão e me diz que não vou morrer e que,  o que quer que se estivesse a passar comigo, íamos descobrir.

Depois de uma hora de conversa mais humana do que médica, saio do consultório com várias folhas de exames para fazer e a sentir-me mais segura, a ver uma luz ao fundo do túnel porque um médico decidiu ir mais além, decidiu procurar a causa, porque um médico me disse "vamos lá ver então o que se passa e vamos resolver". Ia agora começar uma nova fase, a dos exames, a das respostas.

Foi com essa sensação que me deitei nessa noite, de esperança. Se dormi? Não, continuava sem conseguir dormir mesmo com os sedativos que me tinham dado nas urgências, e porquê? Porque depressa me apercebi que o medo de morrer de ataque cardíaco tinha passado mas tinha iniciado um pior, o medo do que os exames iriam acusar. O medo da doença. Ia começar uma nova etapa, uma etapa que se veio a tornar ainda pior do que a que já tinha passado. A etapa da descoberta.

Rita

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

O primeiro mês de "Chá(nax) das 2".


Bem, quem lê este título até pode pensar que estamos a falar de um filho ou assim. Não é um filho, pois claro que não, mas que estamos muito felizes e orgulhosas por este primeiro mês, lá isso estamos.

O “Chá(nax) das 2” faz hoje um mês e, até agora, o balanço não podia ser mais positivo. Ora vejamos:

-       Quando iniciámos este projeto, com muita vontade e entusiasmo, pensámos que, pelo menos nos primeiros tempos, iríamos ser lidas apenas por 3 ou 4 amigos mais próximos. Talvez, aos poucos, muiiiiito devagar, a mensagem se fosse espalhando.... Mas não. Fomos lidas 2726 vezes num mês. Quão incrível isto é?
-       Percebemos, pelas mensagens que nos têm chegado, que este blog pode, realmente, ser útil numa das temáticas mais sensíveis na nossa sociedade.
-       Percebemos que, para nós, também é muito bom escrever sobre algumas coisas que nos estavam entaladas, agora que já estamos bem e que a fase marada, no seu esplendor, já passou.
-       Percebemos que gostamos mesmo de escrever, ainda mais do que pensávamos.
-       Concluímos, portanto, que este projeto é mesmo para continuar, com a dedicação e o entusiasmo que não escondemos sentir... Portanto, preparem-se para nos continuarem a aturar... :)

É de coração cheio e de sorriso nos lábios que vos dizemos obrigada! Obrigada, a todos, por estarem aí!




Rita e Teresa

sábado, 13 de agosto de 2016

"Descansa um bocadinho que isso passa".


Esta é uma daquelas frases que, quem passa por qualquer problema ligado à saúde mental, já teve certamente – e infelizmente - de ouvir. Mas não, não é a única. Lembro-me, assim de repente, de outros exemplos:

-       “Isto está tudo na tua cabeça”: pois claro que está, nós sabemos que está, mas... e então? Não seria a mesma coisa se estivesse no pé, no braço ou na barriga?
-       “Tu não tens nada, respira fundo e segue em frente”: desculpem? Não tenho nada? Então eu já não me reconheço a mim própria, não consigo fazer nada do que fazia anteriormente e... não tenho nada? Não tenho nada só porque os exames físicos não detetaram nada?
-       “Tu tens é preguiça”: esta, para mim, é capaz de ser uma das melhores... Preguiça? A sério que aquilo que eu passei pode, alguma vez, ser confundido com preguiça?

Estes e outros comentários, do género, vêm comprovar que, de facto, ainda existe um grande estigma relativamente à saúde mental. É triste, com certeza que é, mas é a verdade.

A princípio, ficava mesmo muito revoltada. Sentia que não era compreendida, que não acreditavam em mim e que isso só piorava o meu estado – porque, a tudo aquilo que eu já estava a passar, juntava-se a culpa. A culpa, essa grande inimiga,  que aparece para nos deitar ainda mais a baixo e que nos faz por inúmeras coisas em questão – por exemplo, “será que eu consigo mesmo dar a volta a isto e ir trabalhar, como me dizem para fazer? Mas... mas eu não sou capaz. Será que sou uma fraca?”. A culpa, que, sem dúvida, vem atrasar o processo de aceitação – que, para mim, foi fundamental para assumir que estava doente e que precisava de ficar boa.

Para mim, já era difícil aceitar que estava doente – sem saber como nem porquê. Ouvir comentários deste género só vinha piorar tudo. Porém, houve um momento em que os comentários deixaram de me afetar. Sei exatamente que momento foi esse:

Um amigo meu, grande grande amigo meu, que me acompanhou de perto durante toda a fase marada, escreveu-me, um dia, isto: Desde esse tempo que eu aprendi a distinguir muito facilmente e com bastante segurança dois tipos de pessoas: as que sabem o que são problemas de saúde mental e as que não sabem. Apercebi-me de que nisto não há meio termo e que apenas uma pessoa que pertença ao primeiro grupo tem a capacidade, quer queira ou não, de empatizar com alguém que tem ou teve sintomas ligados à saúde mental, independentemente de como aceita os comportamentos dessa outra pessoa (ou seja, empatizar não é desculpar).”

A partir do momento em que eu li isto, fez-se um clique na minha cabeça. Fez todo o sentido. E, na verdade, eu não critico nem culpabilizo quem não tem a capacidade de empatizar connosco, no que diz respeito à saúde mental: aceitei que, de facto, para quem não passa o que nós passámos, pode ser difícil de compreender: os sintomas são facilmente confundíveis com a tal “preguiça” ou com a “fraqueza” ou com o “desanimo” e, convenhamos... Não há provas físicas daquilo que nós estamos a passar. É lixado. É lixado para nós, mas para os outros também será, certamente.

Apesar disto tudo, acho que estamos no bom caminho no que respeita à aceitação da saúde mental. Quero muito acreditar nisso. E é por isso, também, que aqui estamos hoje, a partilhar os nossos testemunhos, na primeira pessoa. Acreditamos, genuinamente, que possa fazer a diferença – por mais pequenina que seja.



Teresa

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

"O que é a ansiedade?"


Fizemos esta pergunta a várias pessoas da nossa faixa etária. Queríamos saber as suas respostas. Queríamos ter uma ideia do que é para os outros – rapazes e raparigas, mais ou menos jovens, com diferentes profissões, de diferentes cidades – a ansiedade.

Ansiedade é uma palavra muito usada, nos dias de hoje. Não é de estranhar, parece-nos. Tantos são os fatores – internos e externos – que podem potenciar a ansiedade nas pessoas. Tantos são os graus e as formas que a ansiedade pode assumir.

Para nós, que vivemos períodos lixados – perdoem-me a expressão – despoletados pela ansiedade, achámos importante ter outras definições, outras ideias, outras percepções, vindas de fora.

Aqui ficam, então, algumas das frases que recebemos:

  • A ansiedade surge quando nos apercebemos (a nível consciente ou inconsciente) que não conseguimos controlar algo.” (L, 25 anos) 
  • “A ansiedade é a perda de autocontrole ao tentar controlar aquilo cujo controlo não está ao nosso alcance.” (A., 25 anos)
  • “Ansiedade, para mim, é como um peso interior que torce o meu corpo inteiro e tenta tramar a minha mente. É uma luta constante no meu dia a dia.” (C., 25 anos)
  • “Ansiedade é a ideia de querer fazer algo, mas ter medo das consequências” (B., 36 anos)
  • “Ansiedade é vivermos com um medo constante do futuro. Quer seja nas pequenas ou nas grandes coisas.” (L., 25 anos)
  • “Ansiedade é viver com medo. Medo de tudo e medo de nada. É trazer constantemente o coração nas mãos como se o (nosso) mundo pudesse desabar a qualquer momento.” (M., 31 anos)
  • “Ansiedade é ter que ir trabalhar mas não poder sair de casa por medo de falhar e ficar ainda mais irritada por depois não ir trabalhar no final e saber que se fez porcaria.” (S., 25 anos)
  • Ansiedade é quando o nosso corpo nos começa a dar sinais: aceleramento do batimento cardíaco, tremores, suores. O nosso corpo comunica connosco, basta estarmos atentos a ele e identificarmos que é nada mais do que... ansiedade.” (C., 26 anos)

O que retirámos daqui? Que a ansiedade está verdadeiramente associada ao medo. Ansiedade é medo. Ansiedade gera medo.
Mais: ansiedade e controlo. Não conseguir controlar. Perder o controlo. Ter medo – sempre o medo – de não conseguirmos controlar tudo aquilo que queremos.
A ansiedade pode, de facto, ser limitativa. Mas também pode ser saudável – depende, depende sempre da forma como a conseguimos gerir. E das dimensões que ocupa na nossa vida. Em nós.

Quanto a nós, identificámo-nos, tal e qual, com tudo o que foi dito. Medo, controle, sintomas físicos, limitação do dia a dia: as ideias chave destas frases foram parte do nosso dia a dia.

Obrigada a todos, pelas frases e pelas opiniões sinceras!

Rita e Teresa

sábado, 6 de agosto de 2016

O medo da descoberta.



As primeiras semanas desta luta são difíceis, por várias razões. Para mim, a primeira e mais complexa é entendermos por que deixamos de ser nós, por que razão as nossas atitudes mudam, a nossa vontade de sair deixa de existir, o nosso sorriso desaparece e o nosso corpo não pára de tremer e de apresentar sintomas dolorosos. A segunda é tentarmos perceber do que é que temos medo, por que razão, do nada, começamos a ter medo de tudo. O nosso corpo pensa que está em perigo e reage acendendo o rastilho do medo, o medo de morrer.  A terceira é a vergonha. A vergonha de que os outros saibam, que notem. É sobre esta terceira que quero falar.

Eu tinha muita vergonha por estar a passar aquela fase, não queria que os meus amigos se apercebessem que estar num jantar era um sacrifício enorme e que estava agarrada ao telemóvel a ver vídeos para tentar ocupar a cabeça e não me deixar levar pelo medo. Medo de que ?? Não sei, ainda hoje não sei, mas ele estava lá. Não queria estar num restaurante e ter que sair a correr para apanhar ar porque, do nada, o coração disparava ou não conseguia respirar. Não queria ir às compras porque sabia que, a qualquer momento, podia ter que chamar o 112. E esse tal medo de que os outros notem, de que algo aconteça, é ainda pior no trabalho. A última coisa que eu queria era que os meus colegas percebessem que eu tinha deixado de ser eu, mas como podemos fingir ser  alguém  que desaprendemos a ser?
Eu sou aquela pessoa que chega ao trabalho com um sorriso e diz um bom dia cheio de energia, que faz trocadilhos e conta piadas, que ri à gargalhada até chorar e que tem sempre interesse em ouvir os outros.
Passei a ser uma pessoa que chegava tarde, triste, que não dava o bom dia nem sorria à gargalhada, era simplesmente um bibelô de auscultadores nos ouvidos, que não queria ouvir ninguém e que tentava ganhar concentração para fazer o que me competia. Tentei manter-me assim até ter um ataque de pânico em plena tarde de trabalho.

Quando aconteceu, as pessoas que já me conhecem e que desconfiavam que algo se passava passaram a ter a certeza de que não era apenas mau feitio, era algo pior. É no momento em que chegamos a este ponto que temos duas soluções: fugimos e não dizemos nada, metemos baixa e ficamos no nosso canto, sozinhos, ou abrimos o jogo e assumimos que não estamos bem, que precisamos de ajuda.

Eu acabei por misturar as duas. Fiquei uma semana de baixa por imposição médica, porque não dormia há uma semana mas tentava todos os dias apanhar o comboio, chegar ao trabalho e fazer o que estava planeado, mas também contei que não estava bem. Tive de contar, tive que deixar a vergonha num canto bem pequeno, corar, e contar que não estava bem, que não conseguia produzir, não me conseguia concentrar.
Este "desabafo" perante os colegas tem duas consequências, na cabeça de alguém que sofre este tipo de problema: o alívio, por deixarmos claro que não é falta de profissionalismo mas algo patológico, e o medo de que os nossos superiores pensem que não somos capazes, que nos coloquem um rótulo de "doente mental" e que nos retirem responsabilidades ou não nos deixem progredir. Não é fácil fazer a escolha, não é fácil desabafar sabendo os riscos que corremos mas também o que podemos fazer? Ficamos fechados num casulo onde só existimos nós? De que nos serve respirar se não vivermos? Se não sorrirmos? Se não nos orgulharmos de quem somos e do que podemos ainda vir a ser?

Não é fácil, aliás, é muito difícil, admitir que tenho um problema psicológico que vem e vai sem qualquer aviso, que me derruba todas barreiras. Passado todo este tempo continuo a ter momentos no trabalho em que tenho que me sentar na casa de banho e chorar , chorar até o peito parar de doer. Depois respiro fundo, enxugo as lágrimas, lavo a cara e volto. Muitos não notam, mas é bom saber que os que notam não me vão julgar, vão acenar com a cabeça e sorrir como quem diz "força".

Podem dizer que tenho sorte em ter colegas destes, e é verdade, tenho, mas também é verdade que fui eu que deixei cair a barreira, derrubei o forte que estava a construir e permiti que eles se mostrassem assim.

Com a família mais próxima aconteceu o mesmo. A partir do momento em que sabemos que podemos ligar e falar durante 1h, trocar mensagens um dia inteiro, dizer os maiores disparates médicos (porque naqueles momentos adquirimos um diploma médico e pensamos que estamos certos em relação ao perigo de vida), tudo se torna mais fácil.

O passo entre deixarmos de ter vergonha e admitirmos o problema é gigante e doloroso mentalmente, não é o mesmo que contarmos que temos diabetes, é muito mais complexo que isso devido ao estigma que existe em relação às doenças mentais (como se o cérebro não fizesse parte do corpo), mas, depois de dado, compensa tanto!!

Não sintam vergonha, não precisam de abrir o livro da vossa vida, mas admitam que não estão bem, basta dizerem "estou a passar por uma fase complicada", não pensem que o casulo é mais seguro que o abraço de um amigo ou o simples olhar de um colega de trabalho. Não é, é mais solitário e infeliz e, acima de tudo, é um casulo que em vez de se transformar numa borboleta, se transforma  num poço, um poço que nos afunda para um estado que ninguém deveria experimentar.

Somos 7 biliões de pessoas no mundo, aproveitemos isso!

Rita