Este texto hoje não é sobre mim.
Este texto hoje não é sobre a Teresa.
Este texto hoje é sobre a mulher mais importante da minha vida.
Este texto hoje é sobre a maior guerreira que eu conheço.
Este texto hoje é sobre a minha mãe.
A minha mãe faz hoje 55 anos dos quais quase 30 tenho a honra de fazer parte.
De uma família pouco abastada de 7 irmãos, cedo teve de aprender a lutar. Lutar para comer, para ir à escola, para ter um brinquedo que serviria aos 7 irmãos. Dotada de inteligência e de notas perfeitas a matemática, viu o seu sonho de carreira interrompido pela falta de dinheiro dos pais e pela necessidade de ajudar em casa.
Conheceu o meu pai muito jovem, o seu único amor, o seu único homem.
Foi mãe aos 25 anos e teve no meu nascimento mais uma grande luta. Esquecida num banco do hospital viu as dores do parto e as contrações aumentarem à medida que os médicos passavam sem nada dizerem. Esperou, aguentou a dor e assim se manteve até as dores passarem, até as contrações pararem. Perto de desfalecer foi socorrida por uma enfermeira e levada para a sala de parto, viu a filha ser tirada a ferros e entubada, esperou 5 minutos até ouvir o choro, 5 longos e sofridos minutos… A primeira grande luta da sua vida, a primeira vitória (agora apercebo-me que também para mim o foi).
Foi talvez por ter sofrido tanto para eu nascer que me soube amar sem limites.
Ensinou-me tudo o que conseguia e o que não conseguia, mas eu teimava em saber, ela aprendia para me explicar depois.
Fui uma criança feliz, mimada e amada mas a saber retribuir cada gesto, a dar valor às pequenas coisas mais ainda do que às grandes, a saber que cada conquista tem um prémio, o prémio da maturidade. A minha mãe deixou-me cair mas esteve sempre lá para me levantar. Agora mais abastada soube dar-me o que eu queria na medida certa, ensinando-me que tudo tem um preço, que cada brinquedo, viagem, ou livro, eram sinônimo de trabalho, de suor e de algumas lágrimas.
Eu queria retribuir esse amor e felicidade da melhor maneira que conseguia, dando-lhe motivos para se orgulhar de mim. Acho que consegui.
Entrei no curso que queria, na universidade que queria mas fiquei a 350km de casa, aos 17 anos e sem conhecer ninguém. Senti pela primeira vez a dor da saudade, senti a minha dor mas senti também a dor de saber o sofrimento que a minha ausência lhe estava a causar. Sentia-o a cada abraço de despedida, sentia-o no silêncio da noite quando só queria estar na minha cama, na minha casa.
No meu segundo ano da faculdade, a minha mãe descobre que está grávida, aos 45 anos e 19 anos depois ia ser mãe novamente.
Aconselhada a abortar pelos médico devido a vários problemas de saúde, foi contra tudo e contra todos e decidiu seguir em frente sabendo os problemas que a gravidez lhe podia causar. Seguiu, sofreu, venceu. A Matilde nasceu, linda, sem qualquer problema. Um mês depois cai numa depressão pós-parto que nos abalou a todos profundamente. Com a ajuda de todos, deu a volta por cima e conseguiu mais uma vez provar que não se deixava levar por qualquer coisa.
Pouco tempo depois de recuperada vê o meu pai partir numanova aventura em Angola e fica sozinha a tomar conta da minha irmã. Eu ia quando podia, mas podia tão pouco...
Não muito tempo depois vê o pai morrer com cancro no pulmão e o irmão debilitar-se com ELA (esclerose lateral amiotrófica). Sempre com uma garra infindável tenta manter-se erguida para educar a filha e mesmo quando o irmão acaba por morrer tenta não parar de sorrir, tenta não transparecer a dor, mais uma vez consegue, mais uma vez vence. Mesmo com mais idade, mesmo com menos paciência, mesmo sozinha, tenta passar à minha irmã os valores que me passou até que mais uma vez tem que lutar, desta vez uma luta desigual, uma luta contra um tumor cerebral incurável.
Lembro-me como se fosse hoje, lembrar-me-ei sempre.
Dia 30 de Novembro de 2011, a minha mãe e a minha irmã vinham no comboio para passar o fim‑de‑semana comigo como tantas vezes faziam. Recebo uma chamada da minha mãe a dizer que não se está a sentir muito bem mas que já tinha pedido para lhe trazerem água e que ia melhorar, fico de ligar pouco depois para saber como se sente. Ligo e já não é ela que me atende mas sim o revisor do comboio. Estão parados à espera da ambulância, a minha mãe apresenta sintomas de AVC e a minha irmã seguirá para Lisboa ao cuidado do revisor. Fico sem reação, de um momento para o outro não vejo nem ouço ninguém. Não sei o que se passa, não sei o que fazer nas duas horas que o comboio onde a minha irmã vem demora a chegar. Penso no que lhe hei-de dizer, penso em como tenho que esconder o meu medo, a minha dor, penso em como é difícil colocarmos uma máscara de paz quando todo o nosso interior sofre, penso em como a minha mãe o conseguiu fazer nos últimos anos, sinto um orgulho enorme nela e uma inveja da sua força. Não posso chorar em frente à minha irmã, não posso sequer mostrar o mínimo receio mesmo não sabendo nada sobre a minha mãe. Vejo o comboio chegar, espero e vejo-a ao fundo, a sorrir e de mão dada com o revisor. Corre para mim e abraça-me. É nessa altura que sorrio, é nesse altura que percebo o que é o amor incondicional, a força que nos faz vestir a máscara, aquela criança não merecia sofrer, não podia sofrer, e eu ia fazer tudo por isso.
Percorro com o meu namorado o caminho até Leiria, o hospital para onde levaram a minha mãe. Fazemos a viagem a falar com a minha irmã, a distraí-la, o meu cérebro dividido em dois, a dor de não saber como a minha mãe está contra a força de não o mostrar e fazer crer à minha irmã que no dia seguinte iria ter a mãe com ela, de perfeita saúde.
Chegamos a Leiria perto da 1h e entro a correr nas urgências, vejo a minha mãe na maca e sinto um sufoco, uma falta de ar, um murro no estômago. Pela primeira vez tomo consciência de como a vida é volátil.
Passei a noite ao lado dela e de tantos outros doentes que se encontravam naquele SO, via médicos a entrarem e a saírem,tentava obter respostas mas ninguém me dizia nada, via a minha mãe a sofrer mas ao mesmo tempo a tentar manter-me calma, a fingir que era uma indisposição, percebi que estava a tentar fazer comigo o que eu estava a fazer com a minha irmã, a colocar uma máscara sobre o sofrimento, mas para ela, isso era impossível naquele momento, eu sentia-lhe as dores.
Depois de uma TAC decidem transferi-la para Coimbra sob apertada vigilância. 48h depois temos a resposta, um tumor no sistema nervoso central, agressivo e não operável. A minha mãe recebeu a notícia de uma forma serena, eu nem tanto. Saí para falar com o médico, a resposta foi cortante "'não há muito a fazer" (essa frase não a disse à minha mãe).
Voltei para junto dela e perguntei como se sentia, pensei que a resposta fosse de raiva, de injustiça, mas não… Serena, tranquila, ela responde: "Não sou mais do que ninguém, se acontece aos outros, porque não me pode acontecer a mim também?". Foi nessa altura que percebi que tinha à minha frente uma mulher com um força tremenda, uma coragem desmedida e uma lutadora que não se ia deixar levar assim tão facilmente.
Uma semana e poucos dias depois a operação para fazerem biópsia. Eu não continha o nervosismo mas ela sim, ela sorria, ela fazia piadas sobre a situação, ela ajudava aos colegas de quarto, ela fingia que estava bem, que não tinha aquele bicho dentro dela.
Foram 12 longas horas na sala de operações, eu, ciente dos riscos que a operação acarretava, não consegui sair de perto até ver o médico e ouvir as palavras que me aliviaram um pouco "correu tudo bem".
Mantiveram-na no hospital até ao dia 23 de Dezembro, eu só queria passar o natal com ela em casa, ela fez tudo por isso e conseguiu. Na minha cabeça poderia ser o último natal, na da minha mãe não, era só mais um.
Durante quase um mês eu não saí de perto dela, já conhecia de cor as paredes e os corredores do hospital, já sabia o nome dos enfermeiros, dos médicos, dos outros doentes. Durante um mês eu não fui trabalhar, desdobrava-me em viagens para estar com a Matilde e com a minha mãe, chegava a fazer 600km (o meu pai ainda não tinha conseguido sair de Angola). Senti o verdadeiro significado da palavra amor, em todas as formas, no sofrimento, nos sorrisos, na força, na dor e na paz. Aprendi a guardar as lágrimas para o final do dia e a sorrir mesmo despedaçada por dentro, aprendi a força que o amor pode ter mas aprendi pela primeira vez a lidar com o medo da solidão. No meio do meu turbilhão de emoções do que o amor é capaz, aprendi a ser a melhor amiga da minha mãe, a dar-lhe a mão como ela me dava quando eu era criança, a dar-lhe a força que ela me dava nas minhas quedas e a guardar para mim os segredos que a poderiam fazer sofrer. Nunca chorei à frente dela, não por vergonha, mas porque a força dela não mo permitia.
Em fevereiro, iniciam-se os tratamentos, quimio e radioterapia ao mesmo tempo, quimioterapia para matar o bicho maligno, radioterapia para não deixar aumentar o tumor que não podia ser extraído.
Nunca uma lágrima caiu dos olhos da minha mãe, mesmo quando as agulhas entravam e saíam, mesmo quando o cabelo começou a cair, mesmo quando os enjoos eram tão fortes que não lhe permitiam comer nada, mesmo nos piores dias ela continuava a sorrir, mesmo quando começou a ver as suas feições alteradas pelo inchaço dos tratamento, pela queda do cabelo, pelos enfraquecimento dos dentes, pelo tremor das mãos, até nessas alturas ela se preocupava em saber como eu estava, como os outros estavam e teimava em dizer que estava bem.
Lembro-me dar gargalhadas sentidas quando experimentávamos perucas, chapéus e lenços para ela usar. Não eram gargalhadas de quem coloca uma máscara para enfrentar a vida, eram gargalhadas de quem sabe que a vida vale a pena, de quem vê uma luz no meio da escuridão.
Aguentou tudo e quando ninguém acreditava que ela ia aguentar ela provou que era possível.
Lembro-me de uma pergunta que a médica lhe fez " o que a mantém tão forte? ", a resposta foi imediata, sem pestanejar: "só quero ver a minha filha crescer".
Lutou, lutou com tudo que tinha e que não tinha, desafiou probabilidades e conseguiu, vários ciclos de tratamento depois chegou o dia de sabermos os resultados.
Entrámos as duas no consultório da médica à espera da resposta, preparadas para o pior, mas não foi o pior que nos foi dito, foi sim o melhor, mais do que poderíamos esperar. "Parabéns, contra tudo que estávamos à espera, o bicho morreu". Chorei, pela primeira vez após vários meses de sofrimento, chorei à frente dela, mas chorei de felicidade, uma felicidade que não cabia dentro do peito, uma leveza inexplicável invadiu-me. A minha mãe manteve o sorriso de quem sabia que só podia ser aquela a resposta.
Sabíamos que o tumor continuava lá, sabíamos que não estava curada, nunca estará, mas a maior luta de todas estava ganha.
Ela conseguiu porra. Ela mostrou como o amor pode curar. Ela ensinou-me mais uma vez como se luta, como se consegue. Ela ensinou-me a sentir o sabor da vida.
Agora, quase 5 anos depois, as mazelas da doença começam a sentir-se, quando perde a fala, quando perde os movimentos ou quando confunde situações, mas mesmo assim, continua a sorrir, continua a não mostrar que sofre para não causar sofrimento aos outros.
Agora, quase 5 anos depois, falo dela com um brilho nos olhos e um orgulho que não me cabe no peito.
Agora, no dia que faz 55 anos só lhe quero dizer que é uma honra ser sua filha e sua amiga, que é inexplicável o amor que sinto, que é inigualável a força que me passou.
Agora, no dia que faz 55 anos, só queria estar ao pé dela para lhe cantar os parabéns e para a abraçar, tal como ela fez quando eu comemorei os meus 25 anos a 9 de dezembro naquele quarto de hospital, rodeada de enfermeiros que a minha mãe chamou só para me sentir melhor, para soprar as velas com a felicidade de quem está numa festa de sonho. Não estou perto dela, hoje pelo menos não, e está é a minha maneira de a homenagear, esta é a minha maneira de lhe dizer "OBRIGADA MÃE".