terça-feira, 20 de setembro de 2016

Segundas oportunidades

Não me venham com coisas, há médicos e médicos.
Como em todas as profissões, há os bons profissionais, há os medianos e há os maus.
Infelizmente, dada a natureza do "cliente", maus profissionais na medicina têm na nossa vida um impacto muito maior do que maus profissionais num supermercado, por exemplo.
A minha primeira experiência com a psiquiatria não foi boa, aliás, foi péssima.
Quando entrei no consultório já tinha esgotado todo o leque de possíveis doenças físicas, já sabia que não tinha qualquer problema cardíaco, tumor cerebral ou pulmonar, sabia que não era físico o que me estava a provocar os terríveis sintomas que experimentava.

Quando finalmente me mentalizei que o problema seria do foro mental, decidi marcar a consulta e entrei naquele consultório cheia de esperança, esperança de ser finalmente diagnosticada e tratada. Olhei a médica nos olhos e contei tudo, todo o tormento das últimas semanas, tudo que me lembrei e tudo que me passava pela cabeça. Gostei da médica, simpática, preocupada e aparentemente confiante no meu diagnóstico. Quando saí do consultório vinha a sorrir, a pensar que ia finalmente iniciar o tratamento certo para o que seria o meu problema, TAG ( ansiedade generalizada) e ataques de pânico. Nomes que me assustavam mas que sabia terem "cura". Saí com a mesma esperança com que entrei, saí bem.

Iniciei o tratamento e depressa me apercebi que não ia resultar, que a esperança ia dar lugar ao desespero, que o caminho para a cura ia dar lugar a uma das piores experiências da minha vida, pior ainda do que as que tinha passado desde o primeiro ataque de pânico. É tão cristalina a linha entre a esperança e o desespero.

O meu nível de ansiedade, que já estava no limite, saltou a barreira do aceitável e passou a ser constante, 24horas por dia de medo, 1440 minutos com o coração em taquicardia, 86400 segundos de ansiedade, vários ataques de pânico por dia, cenários monstruosos na minha cabeça... 
Aflita, recorri a pessoas que sabia já terem passado por este tipo de tratamento e que me disseram que era normal, que os primeiros dias, as primeiras semanas, eram ainda piores, que os sintomas ficavam mais fortes, que muitas pessoas desistiam, mas que depois tudo passava e que os dias bons começavam a surgir. Esperei até ao final da primeira semana mas essa normalidade parecia-me cada vez mais distante, eu não entendia. Na minha cabeça não fazia sentido estar a fazer um tratamento para me curar que me deixava muito pior do que alguma vez estivera. Não podia estar certo, algo em mim me dizia que aquilo não estava bem, não podia estar bem, mas ainda assim, incentivada pelos meus, decidi aguentar. 
Aguentei, aguentei tudo até ao dia em que alucinei e não, não estou a metaforizar.

Estava no Alentejo, depois de ter conseguido ir buscar forças ao fundo da alma ( digo alma porque sei que o meu corpo já não as tinha), num sítio calmo, rodeado de montes a perder de vista, de som de pássaros e de pessoas felizes, tudo o que supostamente me faria sentir melhor. Fui dar uma caminhada para ver um lago, gosto de lagos, e pelo caminho começo a sentir-me tonta, pensei que era mais um ataque de pânico, respirei fundo, controlei, terminei a caminhada e é quando chego ao quarto que me apercebo que não há chão, não havia, eu não o via, como se um buraco se tivesse aberto mesmo debaixo dos meus pés, caminhei até ao sofá e a cada passo parecia que as paredes me iam "engolir", as paredes estavam a encolher, a encolher, a esmagar-me. Agarrei as pernas com os braços e coloquei a cabeça nos joelhos, fechei os olhos e gritei. Gritei de medo, sempre o medo. Aquelas paredes estavam-se a mexer, aquele chão não existia, eu estava encurralada, ou ia ser engolida ou esmagada. Apercebi-me perfeitamente do poder que a mente pode ter, a alucinação é monstruosa porque no fundo sabemos que aquilo não é real mas não conseguimos reagir, não conseguimos deixar de acreditar nela. Não sei quanto tempo passei naquela posição até conseguir abrir os olhos. Quando os abri tudo se mexia, os móveis, o teto, tudo deambulava à minha volta e eu tremia de desespero. Tomei 2 dos calmantes mais fortes que tinha, só queria dormir e desaparecer daquele mundo. É este o fundo do poço, quando a solução para o problema é não o viver, é queremos passar o dia todo a dormir para não sentirmos, para não sofrermos, porque nestas alturas, viver dói, dormir não.

Nesse mesmo dia voltei à psiquiatra, mandou-me parar imediatamente com os comprimidos porque tinha feito reacção, "acontece uma num milhão" foi a resposta dela. Não sei se é verdade ou se foi para se desculpar por não ter acertado à primeira, mas qualquer que tenha sido o motivo, não são estas as palavras que uma pessoa perturbada precisa ouvir. Para alguém que está no fundo do poço, ouvir que a solução que lhe tinha dado esperança há uma semana não resultou, quando resulta em 999.999 pessoas, é como tapar o poço. Nesse dia não saí do consultório a sorrir, não saí com esperança, não saí a achar que a médica era simpática. Saí com a certeza de que nada ia resultar, que não havia solução para o meu problema, que estava destinada a passar os dias assim. Entrei num estado de transe, não queria ver, ouvir, sentir ... Como é possível? Em poucas semanas tinha deixado de ser a pessoa que acorda e passa o dia de sorriso nos lábios e aos saltos e tinha-me transformado "naquilo". Como pode a nossa mente transformar-nos assim?

Deixei de acreditar em medicamentos e como tal decidi não tomar os novos que a psiquiatra tinha receitado. E agora ? O que me podia ajudar ? Os calmantes! Os calmantes passaram andar comigo para todo o lado, de SOS passaram a companheiros de todos os meus passos. Arrastei-me assim nos dias seguintes mas apercebi-me que estava a ficar viciada, precisava deles até para me levantar e não era assim que queria estar. De hora em hora media as pulsações, tinha medo de sair à rua, sentia cada picada como se fosse uma dor dilacerante, mas mesmo assim nada disto se comparava à dor psicológica que sentia, a dor de não viver, a dor de apenas sobreviver. 
Eu adoro a vida, adoro as pessoas, os cheiros, os sons, os momentos mágicos, os sorrisos, não podia permitir perder tudo isso ... Foi com esse pensamento que decidi que tinha que dar uma segunda oportunidade a outro psiquiatra porque isso significava uma segunda oportunidade para mim também e eu queria tanto, merecia-a.
Após pesquisa apareceu um nome, o nome daquele que é hoje o meu psiquiatra, aquele que me apresentou um diagnóstico diferente, aquele que me salvou no momento que atendeu o telefone e me disse para estar no consultório dele 30 minutos depois.

Com o desespero nos olhos e as lágrimas a correr, contei tudo, como se estivesse de joelhos a pedir ajuda. Ele não podia falhar porque se ele falhasse eu desistia. E ele não falhou, ele fez-me uma promessa, a promessa de me encaminhar para a cura. Foi a escolha das palavras dele que me deu as certezas que eu queria, ele não me ia curar, ele ia encaminhar-me porque quem tinha que percorrer o caminho era eu, e percorri, com passos lentos mas firmes, a ver o túnel ficar cada vez mais pequeno até a luz aparecer, até o sorriso voltar, até o desespero ir embora, até sentir novamente borboletas no estômago, até conseguir saborear a vida. E que bem que ela sabe.

É esta a mensagem que quero passar hoje, a de que a vida é boa demais para não lhe darmos uma segunda oportunidade, aliás, a vida é boa demais para não lhe darmos todas as oportunidades que ela nos pedir. Abusem da vida, para todos os efeitos, só temos uma.

Rita

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